Rara alquimia com a dor do mundo
Só o fato de que ela tenha escolhido viver em Porto Alegre e seu temperamento introspectivo explicam que Karin Lambrecht não seja, hoje, uma artista ainda mais conhecida e aclamada. Sua ampla e diferenciada obra – diferenciada em relação a outras e diferenciada dentro de si mesma – obriga a recolocar em cena um termo que não está em moda: talento. Para qualificar o talento de Karin, gaúcha de 60 anos, filha de alemães, tenho de procurar um adjetivo especial: resplandecente, talvez? Estão todos a ver, desde já, o entusiasmo com que recomendo uma visita a sua exposição, que ora acontece no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo.
O talento é resplandecente mas a obra é – no geral – densa, profunda, dramática. Justamente por trabalhar apenas a partir de sua intuição criadora, não de programas ou projetos intelectuais que costumam limitar a criação, Karin se dá o direito de fazer o que lhe vem à vontade. Fugindo ao dramatismo, há um conjunto de grandes telas abstratas de lindo colorido que à primeira vista parecem apenas gratificantes: para se pôr na parede e ficar olhando. Se não percebermos a inclusão, nelas, de pequenas cruzes de cobre, diríamos que nada têm a ver com o resto. Mas a cruzinha está lá, como sinal de alerta. A cruz é talvez o signo que mais aparece no conjunto da obra, ao longo dos anos, não como referência cristã mas por seu poder geral de evocação, associado com sofrimento e morte.
Pois talvez seja a morte o ‘tema’ por excelência da obra de Karin (que, apesar disso, é uma pessoa suave!). Ou, se não exatamente a morte, a miserável condição humana diante da inevitabilidade dela, nossa transitoriedade e incompletude, solidão, etc. A visceralidade trágica que se desprende do conjunto é evidente. Karin é dona de uma mitologia muito pessoal que gera seus próprios rituais e sacrifícios. Pinta com a mão, não com pinceis, e ao se ferir, algumas vezes, incorporou o próprio sangue no colorido das tintas. Teve uma fase em que seu principal material passou a ser o sangue de ovelhas. Emprega pigmentos naturais, terra, carvão, variados papéis, folhas e cascas de árvores, etc., e costuma expor obras semi-prontas ao sol e à chuva, que as modificam e terminam. Tudo faz parte de uma rara alquimia que convoca as dores, a da artista e a do mundo, para as transformar em beleza.