Pode, sim, aparecer mijo na poesia
Continuemos nossas expedições pela poesia. Hoje, de novo uma mulher, Adélia Prado, nascida em 1935 em Divinópolis, Minas Gerais. Adélia não poderia ser mais diferente de Cecília Meireles, de quem falamos no último encontro. Cecília é requintadíssima e nada coloquial. Adélia é natural, fala a linguagem comum, parte de um mundo simples, demonstrando que a maior poesia pode-se esconder no menor detalhe do dia a dia. Era uma professorinha primária do interior, modestamente casada com um funcionário do Banco do Brasil, quando, só aos 41 anos, um poema seu caiu nas mãos de Carlos Drummond de Andrade. Descobriu-se então uma poeta (não poetisa) espantosa, da maior qualidade, capaz de tratar também de assuntos complexos sem ficar pretensiosa. Deus, o destino do homem e a sexualidade (sim) estão entre seus temas. Em 1987, Fernanda Montenegro montou o espetáculo Dona Doida, com base em textos de Adélia.
Clareira
Adélia Prado
Seria tão bom, como já foi,
as comadres se visitarem nos domingos.
Os compadres fiquem na sala, cordiosos,
pitando e rapando a goela. Os meninos,
farejando e mijando com os cachorros.
Houve esta vida ou eu inventei?
Eu gosto de metafísica, só para depois
pegar meu bastidor e bordar ponto de cruz,
falar as falas certas: a de Lurdes casou,
a das Dores se forma, a vaca fez, aconteceu,
as santas missões vêm aí, vigiai e orai
que a vida é breve.
Agora que o destino do mundo pende do meu palpite,
quero um casal de compadres, molécula de sanidade,
pra eu sobreviver.