Num(a) caixa d’água, o requinte poético
Seu nome era Manoel alguma coisa, conhecido na Paraíba como Mané Caixa d’Água. Mas deveria ser chamado de caixa (ou antes: poço) de poesia. Não descobri suas datas de nascimento e morte; teria hoje mais de 90 anos. Poeta popular, publicou vários livros de cordel e vivia da venda deles. Quase sempre de terno branco, também saía recitando poemas nos bares de João Pessoa. Mané é prova – há outras – de que o fazer poesia, o talento poético, acontece nas mais diversas situações, tanto entre gente intelectualizada quanto em espíritos (aparentemente) simples. Os versos abaixo chegam a ser requintados. (Um dia lhe perguntaram o sentido do verbo abrumar. Respondeu: “É coisa de mãe. Eu vou lá saber coisa de mãe?”)
Dois poetas: Mané Caixa d’Água (sempre de terno branco) com
Gilberto Gil, provavelmente na década de 1960.
Caminhos perdidos
Mané Caixa d'Água
Se as noites envelhecessem,
se os meus olhos cegassem,
se os fantasmas dançam
em blocos de neve,
para que me ensinaram o caminho
por onde eu caminhei?
A cidade sem porta,
as ruas brancas de minha infância
que não voltam mais.
Se minha mãe se abruma,
se o mar geme,
se os mortos não voltam mais.
Se as matas silenciosas não recebem visitas,
se as folhas caem,
se os navios param,
se o vento norte apagou a lanterna.
Eu tinha nas minhas mãos somente sonhos.
Eu tinha nas minhas mãos somente sonhos.