A dona da palavra cristalina

A dona da palavra cristalina

Paula Reis 178 views Nenhum comentário

É claro que fazer poesia nunca foi um privilégio masculino. Se ao longo da história surgiram menos poetas-mulheres (aconselho não usar o termo poetisa – diga a poeta Fulana), é porque as mulheres sempre tiveram menos oportunidades. Imagine as que, na Idade Média, em vez de cuidar humildemente da casa e de seu amo e senhor, inventassem escrever versos. Perigava irem parar na fogueira.

Felizmente os tempos mudaram. Do século 19 para cá as poetas são muitas. Nossa língua pode-se orgulhar da portuguesa Florbela Espanca (1894-1930), e, no Brasil, de Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Cora Coralina e Adélia Prado – as mais ilustres. A poesia de Cecília (1901-1964) possui uma qualidade formal e uma beleza esplendorosas. Em certo sentido é até difícil, pelo uso tão preciso e pela elegância cristalina das palavras; não é coloquial. Vamos a um de seus mais famosos (e mais simples) poemas.

Motivo

Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.

Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me disfaço,

– não sei, não sei. Não sei se fico

ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

– mais nada.

Publicado em: Arte
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