A dona da palavra cristalina
É claro que fazer poesia nunca foi um privilégio masculino. Se ao longo da história surgiram menos poetas-mulheres (aconselho não usar o termo poetisa – diga a poeta Fulana), é porque as mulheres sempre tiveram menos oportunidades. Imagine as que, na Idade Média, em vez de cuidar humildemente da casa e de seu amo e senhor, inventassem escrever versos. Perigava irem parar na fogueira.
Felizmente os tempos mudaram. Do século 19 para cá as poetas são muitas. Nossa língua pode-se orgulhar da portuguesa Florbela Espanca (1894-1930), e, no Brasil, de Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Cora Coralina e Adélia Prado – as mais ilustres. A poesia de Cecília (1901-1964) possui uma qualidade formal e uma beleza esplendorosas. Em certo sentido é até difícil, pelo uso tão preciso e pela elegância cristalina das palavras; não é coloquial. Vamos a um de seus mais famosos (e mais simples) poemas.
Motivo
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me disfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada.